Hagar A pérola do deserto de Assad Bechara

Hagar é uma personagem bíblica que sempre me intrigou. A história dela no lar de Abraão e Sara, sua sinistra participação nessa família, e como tudo se desenvolveu do começo ao fim é no mínimo curioso para qualquer leitor atento.

Lemos a Bíblia de modo tão automático as vezes, que ao ler que Sara entregou Hagar, sua escrava, à Abraão para que por meio dela pudesse ter filhos (Gn 16:2), destacando o plural “filhos” o que quer dizer que Sara entregava Hagar para ser uma espécie de segunda mulher de Abraão, corremos o risco de inconscientemente ter essa escrava como um robô que poderia ser ligado e desligado a qualquer momento sob as ordens de Sara. Ou mesmo considerar que o patriarca era de plástico, e que não se envolveu ao se relacionar com a escrava. Ou ainda, que Sara ficou tranquila quando dormiu sozinha na tenda enquanto seu plano estava em plena execução. No entanto, não devemos esquecer: Abraão, Sara e Hagar eram humanos, humanos como nós, sujeitos as mesmas paixões [1].

O amor de um homem por duas mulheres ou de uma mulher por dois homens, não consta no plano divino para o ser humano. Onde há bigamia, sempre existirão graves problemas de relacionamento. O que aconteceu nesse lar foi uma tragédia, um erro, um equívoco que só Deus poderia corrigir e redimir. O ponto alto desse livro é justamente esse: ao explorar esse episódio das Escrituras nos fazer refletir sobre a decadência e complexidade da natureza humana e principalmente, sobre a Onipotência de Deus que “apesar de nós” cumpre o seu propósito eterno na história.

A proposta de Assad Bechara nesse livro que abre sua série sobre as mulheres da Bíblia, é fazer uma análise comportamental de Hagar o que se estende ao desenvolvimento de tudo o que aconteceu nesse lar, o lar do patriarca, amigo de Deus, pai da fé, Abraão. Seu foco se dá especificamente ao que está registrado nos capítulos 16 e 21 de Gênesis.

[Caso você desconheça a história bíblica de Hagar, é recomendável que você leia os dois capítulos de Gênesis citados acima antes de continuar 😉 ]

Hagar

Hagar segundo o autor, é uma personagem importante não só para o cristianismo, mas para o judaísmo e o islamismo. Em sua análise, ele utilizou além da bíblia, o alcorão e outros textos antigos, que enriqueceram muito sua narrativa em detalhes sobre o contexto, costumes, cultura… em que esses acontecimentos se passaram.

Uma escrava egípcia. Hagar vinha de um país com sistema religioso pagão. É admirável como sua passagem extremamente complicada pela família de Abraão a coloca frente a frente com o Criador do Universo.

E como se deu isso? Não suportando o jugo de Sara, grávida, a escrava foge para o deserto e ali é encontrada pelo Criador. Hagar é encontrada por Deus no deserto, e ela o reconhece: era o mesmo Deus da sua senhora e do seu senhor. É assim que Hagar se torna símbolo da conversão dos povos pagãos não apenas aprendendo do Mestre dos Mestres noções básicas de criacionismo, mas também a mensagem do resgate e da salvação. Não mais o deus sol, mas o Sol da Justiça iluminaria os seus caminhos. Assim, ela tipifica a conversão de milhões de povos gentílicos à graça redentora. O Senhor olhou para ela. Hagar foi a primeira mulher na História Sagrada a quem Deus se dirige diretamente.

Ela reage. Depois de ser corrigida e aconselhada, de saber pelo próprio Altíssimo que o bebê no seu ventre era um menino e receber promessas a cerca dessa criança, ela o invoca, chamando-o de “Tu és o Deus que me vê”. Contra tudo o que se poderia imaginar mediante aquela situação, uma escrava egípcia fugitiva declara: “Tu és o Deus que me vê” – Glória Deus!

Sara

Sobre Sara. Durante essa leitura como um texto complementar li o sermão do Spurgeon “Sara e Suas Filhas”. A soma desses dois textos sobre Sara me fizeram perceber o peso das palavras de Isaías 51:2: “Olhai para Abraão, vosso pai, e para Sara, que vos deu à luz, porque, sendo ele só, o chamei, e o abençoei e o multipliquei.”

Qualquer estudo sério sobre feminilidade bíblica deve se deter longamente em Sara, pois ELA FOI UMA GRANDE MULHER. Spurgeon de forma maravilhosa como sempre tratou das virtudes de Sara que o apóstolo Pedro destacou em sua primeira epístola capítulo 3 verso 6: ela fazia o bem e não temia nenhum espanto. Bechara por sua vez, discorre sobre o erro de Sara: como Eva passou o fruto proibido para Adão, Sara entregou Hagar nos braços de Abraão. Onde ela estava com a cabeça?

Contudo sabemos: Sara foi perdoada e abençoada. Ela errou? Errou feio. Mas ainda assim, Sara foi incrivelmente submissa ao seu marido, chamando-o de senhor mesmo sendo jogada por ele na mão de dois reis (Faraó rei do Egito e Abimeleque o rei de Gerar) e, mesmo o seguindo pelo deserto por toda a sua vida.

Sara é um exemplo de submissão no casamento, é também um exemplo de uma mulher que soube se posicionar na hora certa. As Escrituras nos conta que depois do nascimento de Isaque ela falou para Abraão mandar Hagar embora [2]. Além de Ismael não ser o filho da promessa, conforme Assad Bechara destaca, aquele erro de entregar Hagar à Abraão estava sendo corrigido, estava sendo fechada a possibilidade que seu marido se deitasse com outra mulher que não fosse ela. A resposta de Deus nessa ocasião ao patriarca foi: Não se perturbe por causa do menino e da serva. Faça tudo que Sara lhe pedir, pois Isaque é o filho de quem depende a sua descendência. [3]

Simples e poética, acessível e bela.

Há muito o que eu gostaria ainda de comentar sobre esse livro, talvez o faça em outros posts. Foi uma leitura surpreendente e mesmo considerando alguns pontos que discordo da teologia do autor.

A escrita de Assad Bechara é maravilhosa. Simples e poética, acessível e bela. A narrativa não é linear, ele vai e volta no texto, nas falas, nos encontros e desencontros; levando o leitor a meditar cada vez mais profundamente sobre o que diz o texto bíblico e suas implicações. Achei incrível como ele conectou esse corte da história de Abraão com outros da história do povo hebreu. Para citar um exemplo: “Sara fez com uma filha do Egito o que os egípcios fariam mais tarde com os filhos de Sara.”

Outro ponto muito interessante também, é a capacidade do autor de escrever sobre a natureza feminina. Já li diversos livros de não ficção e ficção em que autores homens tentaram o mesmo, mas como mulher e leitora, é a primeira vez que vejo um homem escrevendo sobre a alma feminina que realmente me identifiquei, que pensei “nossa! como ele conseguiu” rs. Incrível!

[1] Parafraseando Tiago 5:17
[2] Gênesis 21:10
[3] Gênesis 21:12 NVT

+INFO AUTOR: Assad Bechara nasceu em 1933 na cidade de Pirajuí, São Paulo. É formado em Teologia, Jornalismo, Relações Públicas, Publicidade e Propaganda, Mestrado em Comunicação e Doutorado na Área de Comunicação pela Universidade Andrews, Michigan. É também um pastor adventista atualmente aposentado, mas que foi muito ativo dentro dessa instituição. Seus últimos anos de trabalho foram dedicados aos povos árabes e islâmicos da cidade de São Paulo, onde fundou a Casa de Oração da Comunidade Árabe Aberta. Autor de dezenas de livros, em 2012 foi indicado para ocupar uma cadeira vitalícia da Academia de Letras no Brasil.

Livro: ‎Hagar A pérola do deserto
Autor: Assad Bechara
Editora: ‎Grafsol, 2012
Páginas: 240
Amazon, Estante Virtual
★★★★☆

4 comentários sobre “Hagar A pérola do deserto de Assad Bechara

  1. Já não me lembrava dessa personagem e do seu nome, o antigo testamento está cheio de coisas intrigantes à luz da ética e moral posterior, sobretudo em Cristo. De um Deus justo que penaliza rápido a um Deus justo misericordioso, que se esforça para o arrependimento do pecador talvez seja o salto mais significativo, da lei de Talião para a de dar a outra face e ser o próprio Deus que se dá por nós.

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  2. Sempre achei a história de Hagar interessante, não só por ser a origem dos muçulmanos, mas também pela forma como foi tratada pela família de Abraão, em especial por Sara. Vou ver se encontro esse livro, fiquei bastante interessado

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